Apesar do risco do Sarkozy ganhar as eleições, apesar de existir um Le Pen aqui, apesar de o regime de Vichy ter deportado, mais de 70 mil judeus, da estação de Drancy, é importante observar que Chirac, o presidente da direita francesa foi o único líder europeu que atendeu a reivindicação de seu povo e não enviou tropas para o Iraque.
Gaullismo? Sim. É direita? Em termos franceses, sim. Mas em termos mundiais, essa turma tem um senso político que, por exemplo, em relação ao Blair, do trabalhismo inglês, tem uma enorme diferença. Em suma, eles têm um senso comum mais à esquerda. É claro que o Sarkozy é problemático, mas ele representa justamente aquele cara que chegou tarde (filho de imigrantes húngaros) e quer ser mais realista que o rei.... Esses são sempre complicados e perigosos.
Uma das minhas experiências mais marcantes nesse sentido ocorreu por acaso, quando, em meio a minha busca infindável por um lugar para morar, acabei topando com uma manifestação típica de civismo à la francesa. Era um sábado cinzento. Saí do apartamento que fui visitar e resolvi caminhar ao léu pelas ruelas de um bairro muito interessante, perto do Pantheon. De repente caiu uma chuva danada e eu, sem sem sombrinha, me abriguei em uma parada de onibus. O trânsito estava meio esquisito, porque tinha uma manifestaçao de professores.O pessoal foi se aglomerando embaixo do abrigo e, entre eles, havia um senhor de idade. Todo mundo perguntava o que estava acontecendo, se o onibus tal ia passar, etc... E o tal senhor falou que o tal ônibus devia estar com dificuldade de passar porque o Pantheon estava aberto e todo mundo estava indo para lá : havia a homenagem aos franceses "justos entre as nações". Perguntei a ele do que se tratava e ele me explicou que eram os franceses que esconderam judeus durante a Segunda Guerra Mundial e a ocupação nazista. Resolvi então ir para lá e ver do que se tratava.
O Pantheon é um predio imponente, em cima de uma colina. Foi construido para ser a igreja da padroeira de Paris, a Santa Genevivieve, ou seja Santa Genoveva... Mas durante sua construção, rolou nada menos do que a Revolução Francesa e, obviamente, os partidários dessa turma decidiram dar outro destino para o templo. A princípio, colocaram lá os restos do Rousseau e do Voltaire, mas durante quase 100 anos, entre Império Napoleônico, Restauração e os arroubos revolucionários franceses... volta e meia o tal prédio voltava a ser igreja... Até que o Victor Hugo morreu, era provavelmente a tal III República, e o pessoal definiu que o lugar ia ser para isso mesmo: ou seja, para servir de tumba para os heróis e grandes pensadores franceses - obviamente quando há algum consenso poíitico sobre eles.
Em geral, o Pantheon é como qualquer museu daqui. Se paga para entrar e ver onde estão os restos do Russeau, Voltaire, Malraux, ... Mas nesse fim de semana, do dia 20 de janeiro, o Pantheon ficou aberto para o público. A homenagem começou com uma cerimônia oficial, no dia 18 de janeiro, quando foram homenageados esses mais de 2 mil franceses que salvaram judeus, sobretudo crianças, durante a ocupação nazista. Essa operação, altamente arriscada para a época foi empreendida, até por dois vilarejos inteiros, fora as pessoas que individualmente assumiram os riscos de fazer isso.
O dia estava chuvoso e havia uma fila enorme para entrar no Pantheon. Fiquei surpresa de descobrir que os parisienses achavam isso um grande programa para o fim de semena. Havia uma instalação da cineasta a Agnes Varda, com fotos desses "justos da França", e um filme que representava algumas dessas histórias de solidariedade humana. Em meio à fila, vendo as pessoas aglomeradas, pegando chuva para fazer essa peregrinação cívica, fiquei pensando que tipo de povo é esse que sai de casa em um dia frio e chuvoso para fazer isso. Achei significativo. Depois entendi que alguns aproveitaram que estava de graça a visita a um lugar tão significativo como o Pantheon. Tem tanto museu em Paris. Muitos franceses devem aproveitar para conhecer os lugares quando eles estão de graça. Havia uma fila enorme para ver a tumba. Eu entrei na fila, sem saber seu destino e descobri que e ela levava até onde estão os restos dos heróis e intelectuais franceses. O objetivo da fila era justamente o lugar onde havia uma singela gravação homenageando esses os franceses "justos entre as Nações" que, na verdade, foram reconhecidos como tais em uma cerimônia em Israel.
Tinha uma mulher na fila que me chamou atenção. Ela estava com três meninos e leu diligentemente o que estava escrito lá, explicando do que se tratava para os meninos, provavelmente meio desapontados de ver um troço tão sem graça depois de uma fila enorme. Ela contava a eles em voz baixa o quanto aquela homenagem aos "justos da França" era importante. Ela fazia questão de ensinar àqueles meninos essa história. Ela fazia questão de que eles incorporassem essa memória.
Para aquela mulher, a visita era pedagógica. Ela queria ensinar àquelas crianças o que tinha acontecido e porque tinha que se celebrar aquelas pessoas que anonimadamente ajudaram seus próximos. Algumas delas foram presas por esse gesto. Não sei se houve execuções.
Digam o que quiserem da França, mas é isso que eu admiro neles: sua história politica. Eles se debatem com seus conflitos internos, mas os evidenciam. A França teve esta história complicada de Vichy, seu colaboracionismo. Mas segundo os dados da exposicao, esses 2 mil justos da França conseguiram salvar dois terços dos judeus que viviam aqui.
Na verdade, foi a Revolução Francesa quem primeiro concedeu o estatuto de cidadania para os judeus. Depois o Napoleão colocou isso em questão, fazendo-lhes uma sabatina, perguntando se eles defenderiam sua pátria, a França, se eles casariam com não-judeus, etc.
O importante desse jesto do Chirac é que ao mesmo tempo que ele reconheceu a responsabilidade do Estado francês pela deportação dos judeus para os campos de extermínio, ele também promoveu essa celebração dos cidadãos franceses anônimos que conseguiram salvar milhares deles.
Obviamente que aqui continua a haver anti-semitismo. Na madrugada em que estava escrevendo este texto, 51 túmulos de um cemitário judaico em Lille foram profanados.
Mas existe um gesto do Estado francês em levantar atenção sobre isso. Foi produto de um processo de luta alimentada por estudos, pois pelo que eu entendi, depois da Segunda Guerra, eles optaram "esquecer" como como o próprio regime francês da época colaborou com a tal "Solução Final" dos alemães. Tem que ter pressão política, mas também coragem para enxergar seus próprios podres, evidenciá-los e, quem sabe, expurgá-los Na véspera de assistir a esse ritual cívico, escutei em um bar um cara falando "da perigosa aliança dos judeus com os Estados Unidos".
Mas é isso. Pelo menos aqui, tenta-se combater as xenofobias. Não que consigam, eles pelos menos tentam, debatem acaloradamente sobre isso.
E populaçao se move, se mobiliza contra isso. E o Estado incorpora. Assume.
A Dinamarca, que eu saiba, foi onde houve a história mais exemplar dessa época. O próprio rei dinamarquês comecou a usar a Estrela de Davi amarela imposta aos judeus como modo de lhes identificar. E diante do jesto de seu rei, o povo acabou ajudando centenas de judeus a escapar para a Suécia.
Fiquei emocionada de ver essa homenagam à generosidade humana feita pelo pelo gesto civico daqueles cidadãos anônimos que homenagavam seus compatriotas, também anônimos, em um sábado chuvoso e frio de Paris.
Essas memória, agora oficializada no Pantheon, também já estava gravada nas pedras dessa cidade. Existem placas em todas as escolas de Paris onde estudavam as crianças judias expatriadas para os campos de concentracao, assim como existem placas em todos os locais onde tombou algum francêsc durante a Resistência aos alemaes e a libertação de Paris. "Aqui tombou... pour la France no dia tal..."
Em suma, em um país que chega ao ponto de produzir um grupo de historiadores, enraizados na Sorbonne, chamado "Comitê pela Vigilância dos Usos da História", pode existir a celebração, mas sempre um questionamento de si. Espero que eles sempre continuem assim. Sempre vai ser mais saudável para o mundo.
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