segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Lambendo as feridas: A amnésia da reforma agrária





Lambendo as feridas:
A amnésia  da reforma agrária
Por Débora F. Lerrer
Certo domingo de 2017, enquanto passava pela TV ligada do porteiro, assisti Silvio Santo perguntando para dois participantes de seu programa dominical o que era reforma agrária. Era uma questão  de múltipla escolha e pude constatar o aperto daquelas pessoas que iam perder a chance de faturar algum por que simplesmente não faziam ideia de que reforma agrária era reforma  da “terra”.
Corroborando a marginalização desta temática no imaginário popular, o  site “De olho nos Ruralistas” , ao analisar os programas dos candidatos à Presidência da República de 2018, constatou que somente o de  João Goulart Filho apresentava meta  de assentados da reforma agrária, prometendo destinar terra a 400 mil famílias em um ano.  Em outra matéria comparativa dos programas de governo,  o mesmo site afirmava que  Boulos e Haddad pelo menos falavam em expandir a reforma agrária e "metas específicas para a população camponesa”.
Como a população esqueceu o que era reforma agrária? Como candidatos, mesmo de esquerda, acham irrelevante apresentar metas para a reforma agrária em um país onde a concentração fundiária aumentou nos últimos 10 anos? De acordo com o último Censo Agropecuário, se antes, 1% dos proprietários de terra detinham 45% do território, hoje eles detêm 47,5%.  
O que o que a ditadura militar não conseguiu em seus 20 anos, que foi apagar a reforma agrária do horizonte popular, o governo do PT  conseguiu  em 13.  
Foi só a ditadura militar começar a dar alguma “abertura”, que sem-terras começaram a se organizar e lutar, não por acaso, por terras que tinha sido desapropriadas por Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul,  e Roberto da Silveira, no Rio de Janeiro, no pré-64, e devolvidas para seus supostos proprietários pelo regime exceção que assumiu o poder justamente para evitar a desapropriação de terras ao longo das rodovias federais pelo presidente deposto, João Goulart.
Já Temer, que assumiu a agenda dos ruralistas, foi tratar imediatamente de destruir os vestígios de avanços que tinham sido duramente conquistados nestes anos, acabando, logo de cara,  com o Ministério do Desenvolvimento Agrário para transformá-lo em uma secretaria subordinada à Presidência da República.
Obviamente, a política do silêncio sobre a reforma agrária, banida do debate público nos 13 anos em que o principal partido de esquerda governou o país, teve com contraponto o fortalecimento dos atores envolvidos no que passou a ser conhecido como “agronegócio” e a complacência dos que se organizam em torno de sindicatos e movimentos sociais em torno da expressão agricultura familiar.
Como não podemos jogar o bebê junto com a água suja do banho, é importante frisar que houve sim grandes avanços em termos de políticas públicas para agricultura familiar durante os governos petistas. Houve espaço de interlocução com estes atores que até então não tinham espaço no Estado como os ruralistas, extremamente favorecidos pela política agrícola e agrária da ditadura militar. Estes “novos” atores  acabaram influenciando a construção de políticas públicas muito inovadoras que facilitaram a inserção da agricultura familiar nos mercados institucionais tanto da merenda escolar, como em estoques reguladores e em doações promovidas pela Conab a instituições de assistência social. 
O primeiro programa, a partir de uma lei de 2009, passou a exigir que pelo menos 30% dos alimentos da merenda escolar distribuídos pelos municípios a partir de verbas oriundas do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) fossem oriundos da agricultura familiar.  Em um único assentamento de reforma agrária, o Celso Daniel, localizado no município de Macaé, interior do Rio de Janeiro, a produção de apenas 20% [1] (41 de 200) das famílias dos assentados tinha condições de vender,  já em 2014, 80%  dos 30% mínimos exigidos pela lei, sendo que se tratavam de 35 tipos diferentes de produtos frescos e sem agrotóxicos . Imagina se todos os latifúndios, cujas terras desmatadas perto da BR-101, só dão guarida para magros  rebanhos de boi, que, coitados,  não dispõem nem de sombra de árvores para se abrigar do calor, tivessem sido reformadas, como pretendia João Goulart em 1964?
O outro, o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), logrou grande prestígio internacional, mas era pouco conhecido do grande público brasileiro. Sua eficiência  em integrar os agricultores familiares e seus produtos a mercados institucionais de circuito curto, ou seja, municipais, respeitando as características e hábitos alimentares regionais, levou os Estados Unidos a fazerem uma reclamação oral contra o programa em uma rodada de negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio). Poucos meses depois, em 2013, a Polícia Federal, atendendo as determinações do xerife de toga de Curitiba, Sergio Moro, desencadeou uma espetacular operação: a “Agro-fantasma”, prendendo agricultores que faziam parte de várias cooperativas agroecológicas do interior do Paraná por supostamente usarem a má-fe  na entrega dos produtos do PAA. É que, ao invés de batatas, eles entregaram inhame, ou algo assim. Todos os camponeses presos e humilhados foram absolvidos por falta de provas, simplesmente  quando uma juíza que assumiu o caso, para Moro se concentrar na Lava-Jato,  observou os ritos jurídicos normalmente prescritos pela Constituição.  Mas o Ministério Público do Paraná segue tentando prender alguém por conta deste programa que garantia alimentação fresca e de qualidades para asilos de idosos, orfanatos, creches e escolas da região.
O fato é que governos do PT passaram seus 13 anos dissociando o discurso da agricultura familiar da política pública chamada reforma agrária, única que garante que de  fato seja possível a reprodução social de agricultores familiares, dado o monopólio fundiáro que existe no Brasil. Como este é um tema incômodo, que deixava de mal humor os aliados de plantão, o PT deve ter optado por retirar da agenda. Como resultado, diminuíram drasticamente a criação de assentamentos a partir de 2007, homologaram ao mínimo as terras indígenas em relação aos governos anteriores e aumentam as políticas para “viabilizar” a agricultura familiar sem mexer na estrutura que facilita ou não sua expansão: a agrária.


Terras Indígenas Homologadas
Presidente [período]
Extensão (Ha)
Michel Temer [mai 2016 a abr 2018]
1
19.216
Dilma Rousseff [jan 2015 a mai 2016]
10
1.243.549
Dilma Rousseff [jan 2011 a dez 2014]
11
2.025.406
Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2007 a dez 2010]
21
7.726.053
Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2003 a dez 2006]
66
11.059.713
Fernando Henrique Cardoso [jan 1999 a dez 2002]
31
9.699.936
Fernando Henrique Cardoso [jan 1995 a dez 1998]
114
31.526.966
Itamar Franco [out 92 | dez 94]
16
5.432.437
Fernando Collor [mar 90 | set 92]
112
26.405.219
José Sarney [abr 85 | mar 90]
67
14.370.486
Tabela 1: Terras Indígenas Homologadas

É Marx básico saber que não se pode fortalecer um determinado segmento econômico porque ele se fortalece políticamente, não é?
O capitalismo na América Latina tem sido baseado na produção e extração de produtos primários agropecuários ou minerais. Ou seja, é um capitalismo que depende essencialmente da renda da terra, obtida a partir da exploração agrícola ou da extração de recursos naturais como minério e petróleo.  Quando a economia de uma região depende disso, é possível entrar em jogo a regulação estatal, visto que é o Estado que deveria regular a posse, propriedade e uso da terra e é ele que estabelece as regras de exploração de seus recursos minerais. Quando este processo é regido pelo mercado, tem um particular que é a apreciação do ativo terra, no caso da agricultura, quando vale muito a pena exportar mercadorias primárias para o exterior.  Atualmente, o capitalismo sofisticou suas formas de ganhar renda sobre a renda da terra. Em um país continental como o Brasil, com extensas áreas agrícolas e uma oligarquia reacionária renhida, esta aposta levou ao fortalecimento dos grandes proprietários rurais especializados na grande produção mecanizada e cheia de insumos e que ganha dinheiro na medida em que tem crédito baratos e  vastas extensões de terra para produzir.  Este tipo de empreendimento capitalista, particularmente no Brasil,  depende da frouxidão pela qual o Estado regula a posse, a propriedade e o uso da terra. Ele se favorece quando tem liberdade para avançar na fronteira agrícola expulsando quem estiver no caminho. Como isto segue absolutamente entrelaçado com o poder político, poucos meses de Golpe já foram suficientes para desmontar várias das grandes políticas agrícolas voltadas para  o fortalecimento da agricultura  familiar.
O grande problema é considerar que a pressão dos movimentos sindicais do campo, que influenciaram a criação destas políticas, bastava para consolidá-las.  A verdade é que estas políticas são indissociáveis da reforma agrária propugnada na década de 90, através de ocupações massivas de terra e mobilizações conjuntas de movimentos sociais e movimentos sindicais, os chamdos Gritos da Terra de 1994 e 1995. Ou seja, não podem ser descoladas de um contexto em que a luta por terra e território andava de mãos dadas com as demandas mais específicas do que passou a se chamar de agricultura familiar. E dissociar um do outro é o que fragilizou estas políticas. Porque fragilizou numericamente a base destes movimentos que voltaram-se para a viabilização desta relação com o estado através de inúmeras políticas públicas como o PAA,PNAE, Pronera (Programa de Educação na Reforma Agrária). Não sou contra estas políticas, mas elas não poderiam ter sido implementadas obscurecendo esta relação com a reforma agrária, a grande medida polêmica do jogo e que de fato ameaça a lógica do agronegócio.  Isto ocorre cada assentamento criado divulgava a possibilidade de que qualquer um podia conseguir terra. Houve sem-terras que obtiveram terra com menos de dois anos de acampamento até 2006. Assentamentos realizados rapidamente ou processos de discriminação ágeis de terra devoluta sempre serviram como abertura da torneira pela qual poderiam jorrar inúmeros contigentes de brasileiros interessados em ter terra.  Fora que a ameaça de deslegitimar títulos de propriedade por parte do Estado teria o efeito imediato de baixar o preço da terra.
No entanto o Governo Dilma, além de diminuir escandalosamente a criação de assentamentos, permitiu que uma norma legal viabilizasse a emancipação dos assentados de reforma agrária  que pagassem  as dívidas contraídas com o estado para a implantação do assentamento. Sim, porque assentamento não é terra grátis e este processo significa que eles vender rapidamente e devolvendo esta terra para um mercado de terras já inflacionado. Um processo totalmente aplaudido pela Bancada Ruralista e  que tem sido realizado com bastante afinco pelo INCRA obsecado pelas metas de “titulômetro” dos anos Temer. passam a ter o título de suas propriedades, que eram antes da União, podendo vender rapidamente e devolvendo esta terra para um mercado de terras já inflacionado. Um processo totalmente aplaudido pela Bancada Ruralista e  que tem sido realizado com bastante afinco pelo INCRA obsecado pelas metas de “titulômetro” dos anos Temer. 



[1]  41 de 200 famílias assentadas na área.