segunda-feira, 26 de março de 2007

Dia 8 de fevereiro: 50 mil na rua e o silêncio

  • Estava saindo da aula no Boulevard Raspail, uma grande avenida que corta Paris, quando vejo o portão do prédio fechado. O zelador, não deixava ninguém entrar nem sair. E fora, uma passeata de estilo próximo ao que nós conhecemos no Brasil. Carinho de som, palavras de ordem, montes de panfletos e até a nossa conhecida e inestimável infra-estrutura de camelôs: no caso deles, trailers, vendendo uma espécie de churrasquinho e garantindo do que comer e beber para os manifestantes.
    Em suma, obviamente, resolvi acompanhar a tal da "manif", mal-disfarçando a minha emoção... Afinal quem gosta de passeata sabe do que se trata, e eu estava em uma que se desenvolvia no país que inventou esse tipo de mobilização. Ou seja, uma manifestação à la francesa, felizmente sem "Appellacion d'Origen Contrôlèe", como eles têm mania por aqui... e difundida em todo o mundo.
    Eram professores, funcionários públicos. Mais adiante, na esquina da Rua Rennes, percebo que vem vindo uma outra horda de manifestantes...Petards (bombinhas esfumaçadas e mal-cheirosas) para recebê-los... Eram os ferroviários. A manifestação ficou grande e eu resolvi encarnar meu hábito de jornalista para tentar descobrir do que se tratava.
    Os problema usuais desse mundo neoliberalizante: risco de privatização da empresa de gás, da companhia ferroviária, das escolas públicas. Segundo um ferroviário, Francis Joly, que trabalha em uma oficina de Les Laummes, a SNFC (companhia ferroviária estatal francesa) não está mais contratando o que na prática acaba desencadeando uma privatizacao branca, já que os estáveis estão se aposentando. Ele me explicou que a SNFC tem 160 mil funcionarios em toda França, mas perde uma media de 5 mil por ano. Ele trabalha em uma oficina que repara e contrói sinalizaçao para as ferrovias de todo país. Logo, como a falta de pessoal, eles começam a terceirizar o serviço para outras empresas.
    Os professores protestavam contra a diminuiçao de postos de trabalho nas escolas e contra o agravamento das condições de trabalho. Um dos manifestantes me contou que enquanto a corda se aperta no pescoço dos professores das escolas públicas, o Estado passou a facilitar a criação de escolas privadas. Como as escolas públicas são uma espécie de instituição básica da tal República Francesa - que tanto à direita como à esquerda se orgulha - uma mudança no estatuto das escolas publicas e nas condições de trabalho dos professores significa uma mudança brutal em termos de tradiçoes politicas deste pais.
    A mobilização também protestava contra a tentativa de privatizar a GDF(Gaz de France), acabar com o monopolio dos correios publicos para cartas com menosde 50 gramas, medidas que a nossa experiência própria já ensinou que representam aumento de tarifas e perda de qualidade dos serviços.
    Os manifestantes também me explicaram que, apesar dos "petards" tratava-se de uma manifestação "gentille" e não "offencive". Fui notando também que a tal manifestação que parecia estar terminando, na verdade não acabava nunca. Fui voltando algumas quadras para o prédio da École des Hautes Études, e ela continuava a passar. Lá, perguntei ao zelador porque ele mantinha o portão fechado. E ele me contou que a manifestação dos estudantes do ano passado, contra o projeto de lei que precariza ainda mais o trabalho dos jovens, invadiu e deu uma boa danificada na "Ecole"... em suma, foi uma manifestação "offencive".
    Em meio a mais alguns petards o pessoal comemorou o anúncio do carro de som que a manifestação tinha alcançado a marca de 50 mil pessoas.
    Pelos meus cálculos meio treinados nessa área, realmente era muita gente. Podia ser mesmo 50 mil.
    Fui para Barcelona na mesma noite e contei da manifestação para duas jornalistas que encontrei lá, mal aterrissando na cidade. Elas ficaram espantadas.
    Todos os habitantes da zona euro têm em comum a perda do poder aquisitivo depois de adotada essa moeda. Tudo ficou muito mais caro. Os preços na Espanha em muitos casos se equipararam aos da França, mas os espanhóis continuam ganhando a mesma coisa.
    Mesmo para os franceses a situação ficou complicada. Alguns cartazes levados por manifestantes diziam "o Euro me matou". .
    Mas o que me espantou na verdade foi que colocar 50 mil pessoas na rua é pouco para os padrões franceses.... É normal eles não ficarem sabendo dessas manifestações em Barcelona, o curioso foi que aqui em Paris essa manistação aparentemente passou em branco. Comentei sobre ela com muitas franceses e eles pareceram surpresos, não sabiam que tinha acontecido.
    Tudo bem que meu universo não é lá muito grande. Tudo bem que a vida cotidiana nos tome tanto tempo... mas 50 mil na rua passarem em branco???
    Na hora me lembrei de uma célebre passagem de um jornal francês do século XIX, citada por Patrick Champagne em um artigo publicado em seu livro "Formar Opinião:

“Foram os jornais dedicados à política de todos os matizes que inventaram os Meetings e as Manifestações para espicaçar a curiosidade dos leitores e aumentar suas tiragens”

“O meio de impedir as manifestações encontra-se menos no reforço da força armada do que na abstenção de notícias veiculadas por esta imprensa”

La Revue dês travaux publics (22 de março de 1883).

Em suma, não sei se já se tornaram tão cotidianas as manifestações de 50 mil pessoas em Paris que elas já não merecem mais tanta atenção... Ou se, na verdade, o espaço de visibilidade que dão para elas diminuiu a ponto de elas passarem de fato desapercebidas...

Em suma, a dúvida persiste. Como não estou merguhada na sociedade francesa, não posso avaliar o termômetro deles para isso. Mas os franceses com quem eu conversei se mostraram surpresos de não saberem desse fato.

Já em Barcelona, eles ficaram impressionados com o fato. Tive, por acaso, a oportunidade de constatar que a contaminação das lutas na França tem, por sinal, sua história naquela região. A exposição em homenagem à "Primavera Repúblicana", realizada neste início de ano no Museu da Cidade de Barcelona, começava com uma gravação que reproduzia a Marselhesa cantada nas passeatas festivas que comemoravam a instauração da República nas terras catalãs, mais tarde tão castigadas pelas tropas franquistas.


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