Por Débora F. Lerrer
Num período de enorme ressaca política, é bom
nos guiarmos por idéias que nos levam para além da mediocridade reinante
no cenário político nacional.
Até por que são idéias de um dos autores brasileiros mais
lidos do mundo: o rabino Nilton Bonder. Há cerca de dez anos atrás o vi dando
uma entrevista para a então TVE, afirmando sem titubear que o mundo caminhava
para o socialismo. Mas quem falava
seriamente em socialismo em plano ano 2000? Um rabino?
Lá por 2004, mesmo embalados pela
ascensão do PT (Partido dos Trabalhadores) ao poder, sabíamos que Lula
certamente não faria um governo socialista.
Quem sabe faria alguma mudança agrária que pudesse levar o nome de “reforma”. Como vimos, nem isso.
Quem sabe faria alguma mudança agrária que pudesse levar o nome de “reforma”. Como vimos, nem isso.
E então veio a enxurrada de decepções políticas iniciadas
com o “mensalão”, que decepcionaram a minha geração que começou a votar
com a redemocratização, no fim dos anos 80, e nem titubeava na hora de votar no
PT.
Bonder, no entanto, enxerga essa decepção sem leniência, mas
com generosidade.
Para ele, a ascensão do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República foi um típico “ato
inflamatório correto e importante” para a sociedade brasileira. Mas quando o
PT, sentido-se “dono da verdade” , se acomodou em seus cargos e
benefícios, o inimigo de seu projeto
passou a não ser mais a direita, mas ele próprio.
Explicando melhor: o
rabino chama as mudanças sociais de “processos inflamatórios”. E é nesse sentido que ele tem certeza de que as transformações
pelas quais o mundo vem passando nos levam em direção ao socialismo. “ A não
ser que no meio do caminho nos acometa um processo inflamatório grave que nos
faça morrer”. Bom lembrar que a
inflamação, ao contrário da infecção, não é causada por um agente externo ao
nosso corpo. Ela é causada por nós mesmos.
Em suma, sempre há um custo grande em manter esses processos
inflamatórios, pois neles as pessoas tendem a recolocar uma nova opressão, ou
nas palavras de Bonder: “um novo faraó”.
Ele acha que esse
processo em torno dos governos do PT estão servindo para fazer a sociedade
brasileira amadurecer politicamente, porque as pessoas continuam “cultivando a
fantasia de não acolher que sua humanidade
é e será sempre imperfeita”.
Talvez aí resida o espelho desconfortável que o PT
representa. Não somente os políticos que são corruptos no Brasil. A sociedade
brasileira está permeada de práticas levemente ou pesadamente corruptas de cima
a baixo de seu espectro social. E é preciso encararmos isso de frente.
De fato, só depois de assumirmos e acolhermos nossos erros,
crescemos. E o Brasil é uma sociedade em amadurecimento.
Temos 500 anos de colonização política, cultural e econômica nas nossas costas. Fomos
por mais tempo parte do projeto de outros. Muito lentamente e lutando sempre
contra esse colonizadores - também
internos - é que fomos constituindo uma identidade nacional.
AS JAZIDAS DE SOCIALISMO
Para quem se acostumou com a idéia geralmente
mal-compreendida de Marx de que “a religião é o ópio do povo”, Bonder responde de maneira inusitada. Ele associa “socialismo” à
“era messiânica” que é para onde, acredita ele, a humanidade está caminhando.
Para ele, “a matéria-prima do socialismo é a religiosidade”, em torno da qual
formam-se “jazidas comunitárias”, onde
as pessoas experimentam coletivamente -
e geralmente “de boa-fe” - que a
vida não se reduz “a eu por mim, a eu sozinho”, algo bastante significativo
dentro de sociedades cada vez mais individualistas e consumistas, onde as
pessoas perderam seu “capital comunitário” e se limitam a satisfazer seu lado
animal, que é o do atendimento dos desejos imediatos.
Afinal, o homem é o
único bicho que sabe que vai morrer e tem que lidar com isso a vida
inteira. Se ele se aprisiona na busca
para satisfazer os seus desejos individuais do aqui e agora, nunca terá
satisfação alguma, pois o sentido do viver se perde no meio da reiterada
insatisfação.
O problema dos regimes socialistas realmente existentes foi
que após a revolução - ato inflamatório por excelência - quando a insatisfação
popular ateou fogo nas estruturas dominantes das sociedades, a inflamação
persistiu, devorando seus próprios filhos.
Muitas vezes as utopias levam as pessoas a lugares
inviáveis. E nada acontece de uma hora
para a outra. Sempre será um processo.
A fuga dos judeus do Egito continua a ser para ele a melhor
metáfora desta busca pela emancipação humana que tem nas utopias
anarco-socialistas sua melhor tradução laica.
Os 40 anos que os hebreus demoraram para chegar à “terra prometida” revela, justamente, a
dificuldade que tiveram de efetivamente
“tirar o Egito dentro deles mesmos” e se submeterem às novas regulações – os 10
mandamentos - que tinham que ser implementadas para viverem juntos a partir da
emancipação recém-conquistada. O momento que Moisés recebe a Lei é o momento em que, após a libertação, os
judeus têm que se submeter às novas
regulações éticas expressas por
Deus. Regulações que devem baixar a
fervura da “inflamação revolucionária”.
“O que Deus quer é que vc não
mate, não roube, não inveje o outro, não produza falsidades, não seja corrupto.
Isso é o que Deus quer. Ou seja, Deus quer que vc seja do bem, que vc seja um
ser social não só preocupado consigo, mas com a sociedade, com seu próximo.
Isso é a base de toda a estruturação ética que nós temos no Ocidente”.
A inflamação revolucionária é importante, mas também é
fundamental para que suas realizações permaneçam que se saiba quando baixar o
calor para que ela não devore seus próprios filhos. E nas suas palavras, aí vai
uma ótima síntese do sentimento que a maioria dos ex-petistas que não são “anti-petistas”
sentem:
“É muito comum todos os movimentos
messiânicos acabarem aportando um lugar de profunda decepção e desapontamento.
Isso aconteceu em vários momentos da história utópica do ser humano, onde as
pessoas sonham em trazer um tempo que só pode ser construído com todo um
processo e onde você quer fazer a coisa mais difícil que é blindar o ser humano
de suas próprias fraquezas”.
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