Lambendo as feridas:
A amnésia da reforma
agrária
Por Débora F. Lerrer
Certo domingo de 2017, enquanto passava pela TV ligada do
porteiro, assisti Silvio Santo perguntando para dois participantes de seu
programa dominical o que era reforma agrária. Era uma questão de múltipla escolha e pude constatar o aperto
daquelas pessoas que iam perder a chance de faturar algum por que simplesmente
não faziam ideia de que reforma agrária era reforma da “terra”.
Corroborando a marginalização desta temática no imaginário
popular, o site “De olho nos Ruralistas”
, ao analisar os programas dos candidatos à Presidência da República de 2018,
constatou que somente o de João Goulart
Filho apresentava meta de assentados da
reforma agrária, prometendo destinar terra a 400 mil famílias em um ano. Em outra matéria comparativa dos programas de
governo, o mesmo site afirmava que Boulos e Haddad pelo menos falavam
em expandir a reforma agrária e "metas específicas para a população
camponesa”.
Como a população esqueceu o que era reforma agrária? Como candidatos,
mesmo de esquerda, acham irrelevante apresentar metas para a reforma agrária em
um país onde a concentração fundiária aumentou nos últimos 10 anos? De acordo
com o último Censo Agropecuário, se antes, 1% dos proprietários de terra detinham
45% do território, hoje eles detêm 47,5%.
O que o que a ditadura militar não conseguiu em seus 20
anos, que foi apagar a reforma agrária do horizonte popular, o governo do PT conseguiu
em 13.
Foi só a ditadura militar começar a dar alguma “abertura”,
que sem-terras começaram a se organizar e lutar, não por acaso, por terras que
tinha sido desapropriadas por Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul, e Roberto da Silveira, no Rio de Janeiro, no
pré-64, e devolvidas para seus supostos proprietários pelo regime exceção que
assumiu o poder justamente para evitar a desapropriação de terras ao longo das
rodovias federais pelo presidente deposto, João Goulart.
Já Temer, que assumiu a agenda dos ruralistas, foi tratar
imediatamente de destruir os vestígios de avanços que tinham sido duramente
conquistados nestes anos, acabando, logo de cara, com o Ministério do Desenvolvimento Agrário
para transformá-lo em uma secretaria subordinada à Presidência da República.
Obviamente, a política do silêncio sobre a reforma agrária,
banida do debate público nos 13 anos em que o principal partido de esquerda
governou o país, teve com contraponto o fortalecimento dos atores envolvidos no
que passou a ser conhecido como “agronegócio” e a complacência dos que se organizam
em torno de sindicatos e movimentos sociais em torno da expressão agricultura
familiar.
Como não podemos jogar o bebê junto com a água suja do
banho, é importante frisar que houve sim grandes avanços em termos de políticas
públicas para agricultura familiar durante os governos petistas. Houve espaço
de interlocução com estes atores que até então não tinham espaço no Estado como
os ruralistas, extremamente favorecidos pela política agrícola e agrária da
ditadura militar. Estes “novos” atores acabaram
influenciando a construção de políticas públicas muito inovadoras que
facilitaram a inserção da agricultura familiar nos mercados institucionais
tanto da merenda escolar, como em estoques reguladores e em doações promovidas
pela Conab a instituições de assistência social.
O primeiro programa, a partir de uma lei de 2009, passou a
exigir que pelo menos 30% dos alimentos da merenda escolar distribuídos pelos
municípios a partir de verbas oriundas do PNAE (Programa Nacional de
Alimentação Escolar) fossem oriundos da agricultura familiar. Em um único assentamento de reforma agrária,
o Celso Daniel, localizado no município de Macaé, interior do Rio de Janeiro, a
produção de apenas 20% [1] (41 de
200) das famílias dos assentados tinha condições de vender, já em 2014, 80% dos 30% mínimos exigidos pela lei, sendo que
se tratavam de 35 tipos diferentes de produtos frescos e sem agrotóxicos .
Imagina se todos os latifúndios, cujas terras desmatadas perto da BR-101, só
dão guarida para magros rebanhos de boi,
que, coitados, não dispõem nem de sombra
de árvores para se abrigar do calor, tivessem sido reformadas, como pretendia
João Goulart em 1964?
O outro, o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), logrou
grande prestígio internacional, mas era pouco conhecido do grande público
brasileiro. Sua eficiência em integrar
os agricultores familiares e seus produtos a mercados institucionais de circuito
curto, ou seja, municipais, respeitando as características e hábitos
alimentares regionais, levou os Estados Unidos a fazerem uma reclamação oral
contra o programa em uma rodada de negociações da OMC (Organização Mundial do
Comércio). Poucos meses depois, em 2013, a Polícia Federal, atendendo as
determinações do xerife de toga de Curitiba, Sergio Moro, desencadeou uma
espetacular operação: a “Agro-fantasma”, prendendo agricultores que faziam
parte de várias cooperativas agroecológicas do interior do Paraná por
supostamente usarem a má-fe na entrega
dos produtos do PAA. É que, ao invés de batatas, eles entregaram inhame, ou
algo assim. Todos os camponeses presos e humilhados foram absolvidos por falta
de provas, simplesmente quando uma juíza
que assumiu o caso, para Moro se concentrar na Lava-Jato, observou os ritos jurídicos normalmente prescritos
pela Constituição. Mas o Ministério Público
do Paraná segue tentando prender alguém por conta deste programa que garantia
alimentação fresca e de qualidades para asilos de idosos, orfanatos, creches e
escolas da região.
O fato é que governos do PT passaram seus 13 anos
dissociando o discurso da agricultura familiar da política pública chamada
reforma agrária, única que garante que de fato seja possível a reprodução social de
agricultores familiares, dado o monopólio fundiáro que existe no Brasil. Como
este é um tema incômodo, que deixava de mal humor os aliados de plantão, o PT
deve ter optado por retirar da agenda. Como resultado, diminuíram drasticamente
a criação de assentamentos a partir de 2007, homologaram ao mínimo as terras
indígenas em relação aos governos anteriores e aumentam as políticas para
“viabilizar” a agricultura familiar sem mexer na estrutura que facilita ou não
sua expansão: a agrária.
Terras Indígenas Homologadas
|
||
Presidente
[período]
|
Nº
|
Extensão
(Ha)
|
Michel Temer [mai 2016 a abr 2018]
|
1
|
19.216
|
Dilma
Rousseff [jan 2015 a mai 2016]
|
10
|
1.243.549
|
Dilma Rousseff [jan 2011 a dez 2014]
|
11
|
2.025.406
|
Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2007 a
dez 2010]
|
21
|
7.726.053
|
Luiz Inácio Lula da Silva [jan 2003 a
dez 2006]
|
66
|
11.059.713
|
Fernando Henrique Cardoso [jan 1999 a
dez 2002]
|
31
|
9.699.936
|
Fernando Henrique Cardoso [jan 1995 a
dez 1998]
|
114
|
31.526.966
|
Itamar Franco [out 92 | dez 94]
|
16
|
5.432.437
|
Fernando Collor [mar 90 | set 92]
|
112
|
26.405.219
|
José Sarney [abr 85 | mar 90]
|
67
|
14.370.486
|
Fonte:
Povos Indígenas do Brasil/ISA, https://pib.socioambiental.org/pt/Situa%C3%A7%C3%A3o_jur%C3%ADdica_das_TIs_no_Brasil_hoje
|
Tabela 1: Terras Indígenas Homologadas
É Marx básico saber que não se pode fortalecer um
determinado segmento econômico porque ele se fortalece políticamente, não é?
O capitalismo na América Latina tem sido baseado na produção
e extração de produtos primários agropecuários ou minerais. Ou seja, é um
capitalismo que depende essencialmente da renda da terra, obtida a partir da
exploração agrícola ou da extração de recursos naturais como minério e
petróleo. Quando a economia de uma
região depende disso, é possível entrar em jogo a regulação estatal, visto que
é o Estado que deveria regular a posse, propriedade e uso da terra e é ele que estabelece
as regras de exploração de seus recursos minerais. Quando este processo é regido
pelo mercado, tem um particular que é a apreciação do ativo terra, no caso da
agricultura, quando vale muito a pena exportar mercadorias primárias para o
exterior. Atualmente, o capitalismo sofisticou
suas formas de ganhar renda sobre a renda da terra. Em um país continental como
o Brasil, com extensas áreas agrícolas e uma oligarquia reacionária renhida,
esta aposta levou ao fortalecimento dos grandes proprietários rurais
especializados na grande produção mecanizada e cheia de insumos e que ganha
dinheiro na medida em que tem crédito baratos e vastas extensões de terra para produzir. Este tipo de empreendimento capitalista,
particularmente no Brasil, depende da
frouxidão pela qual o Estado regula a posse, a propriedade e o uso da terra. Ele
se favorece quando tem liberdade para avançar na fronteira agrícola expulsando
quem estiver no caminho. Como isto segue absolutamente entrelaçado com o poder
político, poucos meses de Golpe já foram suficientes para desmontar várias das
grandes políticas agrícolas voltadas para
o fortalecimento da agricultura
familiar.
O grande problema é considerar que a pressão dos movimentos
sindicais do campo, que influenciaram a criação destas políticas, bastava para
consolidá-las. A verdade é que estas
políticas são indissociáveis da reforma agrária propugnada na década de 90,
através de ocupações massivas de terra e mobilizações conjuntas de movimentos
sociais e movimentos sindicais, os chamdos Gritos da Terra de 1994 e 1995. Ou
seja, não podem ser descoladas de um contexto em que a luta por terra e
território andava de mãos dadas com as demandas mais específicas do que passou
a se chamar de agricultura familiar. E dissociar um do outro é o que fragilizou
estas políticas. Porque fragilizou numericamente a base destes movimentos que
voltaram-se para a viabilização desta relação com o estado através de inúmeras
políticas públicas como o PAA,PNAE, Pronera (Programa de Educação na Reforma
Agrária). Não sou contra estas políticas, mas elas não poderiam ter sido
implementadas obscurecendo esta relação com a reforma agrária, a grande medida
polêmica do jogo e que de fato ameaça a lógica do agronegócio. Isto ocorre cada assentamento criado
divulgava a possibilidade de que qualquer um podia conseguir terra. Houve
sem-terras que obtiveram terra com menos de dois anos de acampamento até 2006.
Assentamentos realizados rapidamente ou processos de discriminação ágeis de
terra devoluta sempre serviram como abertura da torneira pela qual poderiam
jorrar inúmeros contigentes de brasileiros interessados em ter terra. Fora que a ameaça de deslegitimar títulos de
propriedade por parte do Estado teria o efeito imediato de baixar o preço da
terra.
No entanto o Governo Dilma, além de diminuir
escandalosamente a criação de assentamentos, permitiu que uma norma legal
viabilizasse a emancipação dos assentados de reforma agrária que pagassem
as dívidas contraídas com o estado para a implantação do assentamento.
Sim, porque assentamento não é terra grátis e este processo significa que eles vender
rapidamente e devolvendo esta terra para um mercado de terras já inflacionado.
Um processo totalmente aplaudido pela Bancada Ruralista e que tem sido realizado com bastante afinco
pelo INCRA obsecado pelas metas de “titulômetro” dos anos Temer. passam a ter o
título de suas propriedades, que eram antes da União, podendo vender rapidamente e devolvendo esta terra para um
mercado de terras já inflacionado. Um processo totalmente aplaudido pela
Bancada Ruralista e que tem sido
realizado com bastante afinco pelo INCRA obsecado pelas metas de “titulômetro”
dos anos Temer.
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