No mês de agosto, Aracaju, a capital do Sergipe foi palco de um inusitado encontro entre policiais militares e sem-terra. Ao invés de confronto, do usual empurra-empurra, cacetadas e da inevitável destruição de seus barracos, os sem-terra, inicialmente, desconfiados, depararam-se com uma tropa de policiais desarmados e atentos às palestras que assistiram, lado à lado, em um auditório da Universidade Federal do Sergipe (UFS), entre elas, a do dirigente do MST, João Pedro Stédile. Depois, almoçaram juntos no RU da Universidade e debateram sobre o futuro do Brasil, dividindo-se em quatro oficinas. O objetivo do encontro, segundo seu organizador, o Tenente-Coronel da PM, Luís FernandoAlmeida, era fazer com que ambos os grupos, no mínimo, “se conhecessem” para, a partir disso, pensarem em possibilidades de “novas formas de relacionamento, que tenham como foco o respeito mútuo e a busca da paz social”.
Esse encontro me fez voltar a maio de 1992, quando sem-terra e brigadianos, os policiais militares gaúchos, dividiram a platéia do Teatro da Reitoria da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) para assistir o Seminário “Violência, Segurança Pública e Cidadania”, em Porto Alegre. Na época, deu confusão.
Como repórter e editora do Jornal Sem Terra, assisti a bate-bocas dos oficiais militares com Hélio Bicudo, autor do projeto que previa a desmilitarização das polícias militares do país e a perguntas tais como: “Sabemos que o Movimento Sem Terra é uma estrutura bastante hierarquizada. Que lugar você ocupa nesta estrutura? Os chefes usam o anel preto e os subalternos usam o anel branco?”
Para agravar a surdez política na qual estes dois grupos se encontravam, os cerca de 50 “colonos do MST”, que dividiam a platéia com cerca de 300 oficiais da Brigada Militar, começaram a ser sistematicamente fotografados e filmados. O realizador do evento, o sociólogo José Vicente Tavares teve que tomar a palavra e solicitar que parassem com as filmagens.
Em 2007, em Sergipe, viu-se um outro país, refletindo as transformações políticas pelas quais o Brasil passou nos últimos anos.
Só um dos policiais da oficina que acompanhei declarou estar na PM porque gostava do militarismo. Mas mesmo ele começou sua fala comentando ter esperado em vão que o país “mudasse” com a eleições. Os demais policiais, mesmo enfatizando o gosto por sua função, declararam estarem na polícia por “estabilidade financeira”. Os sem-terra, por seu turno, também disseram estar no MST para ter a chance de ter algo que fosse deles nessa vida: um pedaço de terra. Todos, em suma, buscavam alguma espécie de “segurança” .
Com o andar da discussão, o grupo foi ficando mais à vontade e podia-se escutar dos policiais: “A briga não é entre nós e vocês, é entre nós e o sistema”. Eles até se perguntaram: “Quando um de nós prendeu um rico?”, “Como podemos mudar se somos manobrados por essa classe política que envergonha a Nação?”. Houve até um questionamento direto: “Como podemos construir uma unidade de classe para transformar o país?”.
Ao escutar essas declarações vindo de quem vieram, me pus a pensar onde esses policiais haviam desenvolvido essa percepção de sua sociedade e essa aparente simpatia pela luta dos sem-terra ? No “Jornal Nacional”? Na “Folha de S. Paulo”? Na “Veja”? Não, com certeza não. Lá, os sem-terra em geral são violentos, colocam a propriedade privada em perigo, ameaçam a Nação. Além disso, sofrem preconceitos nas comunidades onde vivem, onde muitas vezes são vistos como massa de manobra, baderneiros, vagabundos. “Não gostam de trabalhar por isso ficam embaixo daquelas lonas pretas!”.
De onde vem essa compreensão social desses brasileiros, em posições tão diversas, que também já não toleram mais um sistema social tão iníquo que condena à asfixia econômica ou à violência tantas famílias?
No cotidiano. No dia-a-dia das famílias das classes populares que geralmente vivem amontoadas em favelas. Para elas, cada metro quadrado ocupado por barraco é fruto de “invasões”. Neste caso, silenciosas, sem a estridência política das ocupações de terra do MST. Portanto, todo pobre brasileiro pode não admitir em alto e bom som, mas sabe que se não “invadir”, não vai ganhar nada nunca. Tem muito poucas chances de ter onde morar, onde plantar sem usar esse expediente. As “invasões”, sejamos bem claros, não são prerrogativas apenas dos pobres brasileiros. Há uma história de apropriação de terrenos de marinha por ricaços no litoral brasileiro, de grandes extensões de terra por grileiros e de nacos de terreno da prefeitura nas cidades grandes, onde algumas ruas e calçadas são fechadas por seus moradores.
No entanto, basta ser brasileiro oriundo de classes menos privilegiadas para se dar conta que na hora da porrada, o pau come do lado dos seus vizinhos. De seus parentes. E que esses, em geral, desesperados apelam para mil e uma saídas, às vezes, arriscadas, para continuar sobrevivendo dignamente.
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